Logo Site Escritor Amauri Marcondes 2023

Assim é a vida

Todos os dias da semana ela acordava bem cedo para ir à creche, onde passava o dia.

Cristiane tinha apenas três anos e ainda não sabia pronunciar as palavras com facilidade. Os pais trabalhavam fora e ela tinha que ser cuidada por professores e babás pagos pelo estado durante toda a semana.

— Acorda Cris — chamou a mãe Laura, sentando à beira da cama. — Está na hora, filha.

Eram seis e meia da manhã de um dia que prenunciava ser quente, pois já àquela hora estava calor.

— “Tô tum chóno” — disse a menina choramingando. Todo dia era a mesma coisa. Era difícil de despertar a garotinha. — No “télo” ir a “queche”, mamã — disse entre lágrimas. — “Télo” ficai em caja.

— Não vamos para a creche hoje, filha — disse a mãe pegando-a e lavando-a carregada até o banheiro, onde deu lhe um banho e lhe escovou os dentinhos.

— No tem “quéche” hoje, mamã? — perguntou. — É mingo?

— Não filha, não é domingo.

— Poi que no tem “quéche, tão”?

— Você não vai à creche porque vamos a outro lugar.

— “Otô lugai”? — alegrou-se a menina. — No “shope”?

— Não, também não vamos ao shopping.

— Onde “tão”?

— Você está muito especula hoje, hein!

— O que é “pecula”, mamã?

A mãe a levou até o quarto e vestiu-a com uma roupinha leve e foram para a cozinha onde pai João acabava de coar o café.

— On nói vamos, papá? — perguntou a menina, sentando-se em sua cadeira de refeição ao lado da mesa, para tomar o café da manhã.

Os pais também se sentaram à mesa. Estavam com um ar tristonho, isso a menina não deixou de perceber.

— “Vochê” está “tisti”, papá? — perguntou ela.

— Estou. Hoje é um dia muito triste.

— “Poique”?

Ele passou a mão no rosto e depois a encarou. Não sabia como dar uma notícia ruim a uma criança tão pequena. Mas não podia mentir a ela. A verdade era ponto facultativo sempre. Assim fora criado e assim educaria sua filha.

— É o vovô — disse sem preambulo. — Ele morreu.

— “Môieu”? — perguntou inocentemente a menina como se tivesse entendido mal.

— É isso mesmo, Cris — disse a mãe. — O vovô Afonso foi para o céu.

— “Pala o chéu”, mamã? Que “iegal”!

— Agora, coma seu pão que daqui a pouco temos que ir.

Vovô Afonso era o pai do seu pai e durante um assalto ao seu mercadinho, ali mesmo no bairro, teve uma parada cardíaca e morreu antes que fosse socorrido, para a tristeza dos familiares. Ele sempre fora um bom marido, um pai exemplar, um bom filho, e se fora ainda muito novo. Ninguém esperava que ele pudesse deixá-los com apenas quarenta e oito anos de idade.

Ao pai de Cris, caberia cuidar dos negócios do pai dali por diante. Ele que sempre foi um faz tudo no mercadinho, desde repositor, caixa e açougueiro quando era preciso, agora também deveria assumir o papel de gerente no lugar do pai. Nesse dia, no entanto, ele não estava preocupado com o trabalho. Estava horrorizado com o ocorrido e nada parecia prestar.

— Não fiqui “tisti”, papá — disse Cris, olhando o pai cabisbaixo. — O vovô foi “pô chéu”. Um dia “nóis vamo lá visitai ele”, não é mamãe?  

Desceu da cadeira e foi abraçar o pai que não conseguia comer nada, quanto muito tomou uns dois goles de café.

— Só você filha, para nos trazer um pouco de alegria.

— Miau — chamou um gatinho preto, ainda filhote, em uma caixa de sapato num canto do sofá, lá na sala.

— Meu “tatinho” — disse a menina saindo correndo. — Ele já “tá atoidado”.

O gatinho miava enquanto tentava pular para fora da caixa. Cris pegou-o pelo meio e o bichinho arranhou seu bracinho e ela o soltou reclamando:

— “Tatinho” mal-ado — disse. — Não “chou” mais “chua” amiga! — mas em seguida saiu à cata do gato novamente, que tentava se esconder por debaixo das cadeiras da mesa da cozinha.

— Deixe o Teco em paz, Cris — repreendeu a mãe. — Não vê que ele não gosta de ser incomodado?!

— Ele me “anhanhô”, mamãe — se queixou ela, esquecendo o bichano por um instante.

— Ele não gosta que o peguem.

— Aaahh… Mas eu “tosto” dele!

Ela abaixou os olhinhos para o chão, visivelmente chateada.

— Venha, está na hora de irmos — disse a mãe, pegando a bolsa que estava pendurada no espaldar de uma cadeira.

Seu pai tomou um último gole de café e se levantou em silêncio. A dor que sentia era imensa, perdera o pai e isso não mudaria. Era um fato que, por mais que doesse, teria que suportar. Como um alento num momento tão difícil estava ali a pequena Cris, em sua inocência de criança cheia de vida, num contraste com sua dor. Pronta para dar continuidade a ascendência de seu avô Afonso. Essa é a ordem imutável da vida. Uns estavam cheias de vida enquanto outros morriam. Num momento o cidadão podia estar se sentindo o ser mais vivo da face da terra e no outro…

Porque assim é a vida.

Está gostando do conteúdo? Compartilhe!

Share on facebook
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on telegram

Posts Recentes:

Poderia ter sido antes

  Uma amizade nascida tão cedo que, Malu e Manu, podiam ser gêmeas, se não tivessem sido geradas em barrigas diferentes.   Com um tom

Brethe: Eu vejo você

  Até quando uma pessoa pode aguentar a pressão, viver algo que não lhe agrada, e se manter mentalmente saldável?   Tristan Evans está no

AMIGA INSANA

  Pode uma pessoa ser a melhor amiga e uma inimiga ao mesmo tempo?   Quando conheceu Anne na faculdade, Cecilia sentiu uma afinidade já

FILAMENTOS

Um futuro onde homens e androides convivem com grandes corporações tecnológicas que usam de seu poder para subjugar os mais fracos em trabalhos quase escravos.

O homem Bezerro

Quando o Homem Bezerro chega em casa, entrando pela janela, como manda o manual do super-herói experiente, e começa a berrar, sua mãe aquela vaca,