Todos os dias da semana ela acordava bem cedo para ir à creche, onde passava o dia.
Cristiane tinha apenas três anos e ainda não sabia pronunciar as palavras com facilidade. Os pais trabalhavam fora e ela tinha que ser cuidada por professores e babás pagos pelo estado durante toda a semana.
— Acorda Cris — chamou a mãe Laura, sentando à beira da cama. — Está na hora, filha.
Eram seis e meia da manhã de um dia que prenunciava ser quente, pois já àquela hora estava calor.
— “Tô tum chóno” — disse a menina choramingando. Todo dia era a mesma coisa. Era difícil de despertar a garotinha. — No “télo” ir a “queche”, mamã — disse entre lágrimas. — “Télo” ficai em caja.
— Não vamos para a creche hoje, filha — disse a mãe pegando-a e lavando-a carregada até o banheiro, onde deu lhe um banho e lhe escovou os dentinhos.
— No tem “quéche” hoje, mamã? — perguntou. — É mingo?
— Não filha, não é domingo.
— Poi que no tem “quéche, tão”?
— Você não vai à creche porque vamos a outro lugar.
— “Otô lugai”? — alegrou-se a menina. — No “shope”?
— Não, também não vamos ao shopping.
— Onde “tão”?
— Você está muito especula hoje, hein!
— O que é “pecula”, mamã?
A mãe a levou até o quarto e vestiu-a com uma roupinha leve e foram para a cozinha onde pai João acabava de coar o café.
— On nói vamos, papá? — perguntou a menina, sentando-se em sua cadeira de refeição ao lado da mesa, para tomar o café da manhã.
Os pais também se sentaram à mesa. Estavam com um ar tristonho, isso a menina não deixou de perceber.
— “Vochê” está “tisti”, papá? — perguntou ela.
— Estou. Hoje é um dia muito triste.
— “Poique”?
Ele passou a mão no rosto e depois a encarou. Não sabia como dar uma notícia ruim a uma criança tão pequena. Mas não podia mentir a ela. A verdade era ponto facultativo sempre. Assim fora criado e assim educaria sua filha.
— É o vovô — disse sem preambulo. — Ele morreu.
— “Môieu”? — perguntou inocentemente a menina como se tivesse entendido mal.
— É isso mesmo, Cris — disse a mãe. — O vovô Afonso foi para o céu.
— “Pala o chéu”, mamã? Que “iegal”!
— Agora, coma seu pão que daqui a pouco temos que ir.
Vovô Afonso era o pai do seu pai e durante um assalto ao seu mercadinho, ali mesmo no bairro, teve uma parada cardíaca e morreu antes que fosse socorrido, para a tristeza dos familiares. Ele sempre fora um bom marido, um pai exemplar, um bom filho, e se fora ainda muito novo. Ninguém esperava que ele pudesse deixá-los com apenas quarenta e oito anos de idade.
Ao pai de Cris, caberia cuidar dos negócios do pai dali por diante. Ele que sempre foi um faz tudo no mercadinho, desde repositor, caixa e açougueiro quando era preciso, agora também deveria assumir o papel de gerente no lugar do pai. Nesse dia, no entanto, ele não estava preocupado com o trabalho. Estava horrorizado com o ocorrido e nada parecia prestar.
— Não fiqui “tisti”, papá — disse Cris, olhando o pai cabisbaixo. — O vovô foi “pô chéu”. Um dia “nóis vamo lá visitai ele”, não é mamãe?
Desceu da cadeira e foi abraçar o pai que não conseguia comer nada, quanto muito tomou uns dois goles de café.
— Só você filha, para nos trazer um pouco de alegria.
— Miau — chamou um gatinho preto, ainda filhote, em uma caixa de sapato num canto do sofá, lá na sala.
— Meu “tatinho” — disse a menina saindo correndo. — Ele já “tá atoidado”.
O gatinho miava enquanto tentava pular para fora da caixa. Cris pegou-o pelo meio e o bichinho arranhou seu bracinho e ela o soltou reclamando:
— “Tatinho” mal-ado — disse. — Não “chou” mais “chua” amiga! — mas em seguida saiu à cata do gato novamente, que tentava se esconder por debaixo das cadeiras da mesa da cozinha.
— Deixe o Teco em paz, Cris — repreendeu a mãe. — Não vê que ele não gosta de ser incomodado?!
— Ele me “anhanhô”, mamãe — se queixou ela, esquecendo o bichano por um instante.
— Ele não gosta que o peguem.
— Aaahh… Mas eu “tosto” dele!
Ela abaixou os olhinhos para o chão, visivelmente chateada.
— Venha, está na hora de irmos — disse a mãe, pegando a bolsa que estava pendurada no espaldar de uma cadeira.
Seu pai tomou um último gole de café e se levantou em silêncio. A dor que sentia era imensa, perdera o pai e isso não mudaria. Era um fato que, por mais que doesse, teria que suportar. Como um alento num momento tão difícil estava ali a pequena Cris, em sua inocência de criança cheia de vida, num contraste com sua dor. Pronta para dar continuidade a ascendência de seu avô Afonso. Essa é a ordem imutável da vida. Uns estavam cheias de vida enquanto outros morriam. Num momento o cidadão podia estar se sentindo o ser mais vivo da face da terra e no outro…
Porque assim é a vida.