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JUSTIÇA NO FIO DA ESPADA

A taverna da Deusa ficava à beira de uma estrada secundária e por causa disso recebia poucos clientes. Dona Veiga, a proprietária, jamais imaginara que ali seria palco, algum dia, de uma carnificina.

Construída de pedra assentada em argamassa de areia e cal e cobertura de ardósia, a taverna da Deusa com dois andares, em seus áureos tempos fora uma construção imponente e cheia de vida. Naqueles tempos era movimentada e famosa entre os proprietários de terras das imediações que tinha naquele local um ponto de encontro nos finais de tarde, onde era colocado as notícias e fofocas em dia.

Nos dias atuais, entretanto, sua imponência perdera todo o brilho junto com os fregueses que morreram ou foram mortos, ou partiram em busca de segurança e conforto para as cidades ou regiões mais ricas.  A construção acabou se transformando com as intempéries e o castigo do tempo, em uma tapera com pedras frouxas e as janelas e portas de madeira caindo aos pedaços de podres.

Diante esse cenário muito pobre, dona Veiga insistia em viver ali com o neto Armani, menino de doze anos, magro e desleixado que lhe auxiliava no atendimento dos poucos fregueses que aparecia esporadicamente. Era uma idosa com mais de setenta anos, decrépita, cabelos muito brancos com apenas dois dentes na boca. Sempre havia algum engraçadinho que cochichava — ela ouvia as vezes — que um dente era para doer e o outro para abrir o odre de vinho.

— Vem gente aí pela estrada, vó — gritou Armani pela janela dos fundos para dona Veiga, que trabalhava na horta atrás da casa naquele momento.

Ainda com as mãos suja de terra, a mulher caminhou com passos cadenciados e vacilantes em direção à frente da casa. Do canto do imóvel pode ver os forasteiros que vinham ainda a uns cem metros em passos lentos, logo depois da curva da estrada. Eram quatro guerreiros montados em três cavalos e bem armados com espadas e arcos com flechas. Não gostou do que viu. Os cavalos suados mal se aguentavam em pé o que indicava que foram muito exigidos numa corrida.

“De que ou de quem estarão fugindo esses homens? ”

— Que o deus Mandru nos proteja! — rogou a velha sentindo um leve desconforto no estômago.Pouco antes que os fregueses chegassem, dona Veiga entrou na taverna e foi para trás do balcão de tampo de madeira maciça, marcado pelo tempo de uso com buracos de queimaduras e cortes profundos de faca ou espadas, onde lavou as mãos num balde de madeira com água que ficava embaixo do balcão para aquele fim. Ficou esperando os fregueses que amarravam os cavalos na estaca lá fora. À parte o fato de não ter gostado deles, sempre era bem-vindo alguns trocados que pudesse ganhar. A vida era sofrida e uma pessoa precisava de moedas para comprar utensílios. Ainda que só pingasse de vez enquanto, era melhor que nada.

Os quatro homens entraram no estabelecimento em silêncio, suas botas ressoando no assoalho de tábua apodrecida e cheio de buracos. Foram sentar-se na única mesa nos fundos do salão. Sorumbáticos, percebia-se que não tinha sido um bom dia para eles até aquele momento.

— Traga-nos cerveja, velha — gritou um deles, cabelos compridos desgrenhados e barba longa e suja. — Na maior caneca que tiver aí que estamos com muita sede — avisou o outro com cara de fuinha e olhar macabro

Obediente dona Veiga encheu as canecas de bronze, colocou numa bandeja retangular de madeira e mandou que o neto levasse aos clientes. Além do barbudo, percebeu que os outros três eram tão mal arrumados quanto ele que deu a entender ser o chefe do grupo. Apesar da vista já não ser boa como outrora, a idosa vislumbrou manchas de sangue em suas vestimentas. Um deles tinha um corte sangrando no braço acima do cotovelo sem nenhum curativo.

— Queremos algo para comer também, Velha — gritou o barbudo de novo. — Traga qualquer coisa que o Rufus vai acabar desmaiando a qualquer momento. — Caíram na gargalhada.

Era tão raro alguém passar por ali que dona Veiga não costumava servir comida à clientes. Assim, tudo que tinha era um pão duro e mofado com banha de porco para servir. Mandou Armani levar o alimento, mesmo que ela e neto ficasse sem nada para o jantar. Pedia aos deuses que intervisse para que não reclamassem.

Deviam estar mesmo muito famintos, pois comeram tudo e pediram mais.

— Lamento muito, senhores — disse ela com receio. — Essa taverna é muito pobre, como podem ver, nada mais tenho de comer para servir.

 — Traga-nos mais cerveja, então — grunhiu o barbudo, imperioso. — Temos que encher a pança com alguma coisa. Nem que seja com essa água suja que chama de cerveja.

Todos riram da brincadeira. Talvez por causa da bebida, ou pelo alimento, ou mais provavelmente os dois, mas estavam mais alegres, menos contido.

O neto lhes trouxe mais cerveja.

— Ei, garoto, percebi que há um segundo andar nessa espelunca — disse o barbudo. — Quero quartos para passarmos a noite.

O menino relanceou um olhar para a vó antes de responder:

— Os quartos estão desativados a anos, moço. Por falta de manutenção tem muita goteira quando chove, o assoalho está podre e o lugar está tomado pela poeira.

— Pois trate de arrumar pelo menos dois quartos para nós que vamos pernoitar por aqui mesmo essa noite. A semanas que dormimos ao relento e queremos dormir sob um teto essa noite.

— Mas…

— Que mais o que, moleque! Faça como ordenei se tem amor à vida. Pra mim nada custa separar sua linda cabecinha do resto do corpo com minha espada. Quero dormir debaixo de um teto, não ouviu? Até porque vai cair água daqui há pouco. Tenho um calo no dedo mindinho do pé esquerdo que me avisa. E ele nunca erra, entendeu?

— O fato de termos visto o tempo de chuva se levantando no Sul não quer dizer nada, né, Barba? — disse o de cara de fuinha e caíram na risada.

Cabisbaixo Armani caminhou para o lado da avó detrás do balcão.

— O que faremos, vó? — Cochichou o menino meio trêmulo.

— Vamos arrumar os quartos que pedem, filho. Como dizem, o freguês sempre tem razão. Vamos colocar mais uma cama em seu quarto e outra no meu. Dormirão lá.

— Mas vó, e nós?

— Dormiremos aqui no assoalho da taverna. Não se preocupe, Armani. Tudo se ajeitará.

— Não confio neles, vó — chiou entre dentes o menino, para que não fosse ouvido pelos fregueses. — São muito perigosos. Não viu como estão armados e sujo de sangue? Parece que acabaram de sair de uma batalha.

A velha relanceou o olhar para os quatro e disse:

— Suba e faça como eu disse. Não se preocupe com mais nada.

Veiga se considerava uma mulher abençoada. Naqueles tempos turbulentos era raro uma pessoa chegar a velhice. Ela, no entanto, conseguira mesmo contra todas as dificuldades de uma vida recheada de sofrimento e perdas. Ao longo da sua vida tivera três maridos e três vezes ficara viúva. O único filho que tivera morrera a alguns anos assassinado numa briga de bar por causa de um copo de vinho.

O filho fora um bom marido e um pai exemplar, até a fatalidade que levou sua esposa ao parir, e o filho recém-nascido. Depois disso, se tornou amargurado e um bêbado ativo do tipo que bebia até cair em algum canto obscuro, até se recuperar para em seguida encher a cara de novo. A família que deveria ter aumentado fora diminuída e levou junto a sanidade do homem esforçado e honesto que era. O filho mais velho, Armani, veio morar com ela quando tinha nove anos e era seu único parente vivo.

Para garantir que seu ascendente não fosse prejudicado, ela faria qualquer coisa possível e até impossível. Se fosse preciso daria sua vida sem problemas pela do neto. Sentia que chegara longe demais e a idade estava pesando no seu dia a dia. As dores do corpo que eram esporádicas se tornaram frequentes e sequer conseguia ter uma noite tranquila de sono.

Dona Veiga voltou a olhar para os quatro fregueses que bebia e conversavam entre eles em voz baixa. Mesmo assim uma ou outra frase chegava a seus ouvidos. Até porque não estavam preocupados em esconder nada dela.

— …. Podemos aproveitar o saque…

— …. Comprar uma propriedade..

—…. Essa espelunca?…

— … uma boa reforma…

— … seria um ótimo local para usarmos como QG e…

— Será que ninguém mais virá atrás de nós? — perguntou um que tinha um meio elmo na cabeça.

— Se vierem morrerão. O único que metia medo era aquele magrelo com rabo de cavalo.

 — Esse está morto com uma flecha no coração que eu plantei — disse o barbudo —, e nunca mais causará problemas.

O teor da conversa pareceu claro para dona Veiga. Os fregueses faziam planos de se apoderar de sua propriedade. Seu único bem e herança do neto. Isso ela não ia permitir que acontecesse. Envenenaria a comida deles se fosse preciso para salvaguardar o que pertencia ao neto. Aprendera algumas coisas em sua longa vida, e se livrar de inconvenientes era uma delas. Que pensassem estar lidando com uma velha boba e inofensiva que estariam muito enganados.

— A natureza pede passagem velha —, disse o homem que se chamava Rufus, se levantando de sua cadeira. — Onde fica a “casinha”?

— A latrina fica atrás da casa perto da horta — informou dona Veiga. — Tem sabugos limpos numa cesta para se limpar.

 Rufus saiu à porta com os companheiros a rirem dele.

 Dona Veiga sentou-se numa banqueta, cruzou os braços e ficou esperando a volta do neto, para sair e tomar as devidas providencias. Conhecia muitas ervas venenosas que misturadas no alimento podia fazer o trabalho sujo sem preocupação ou misericórdia.

 De onde estava sentada podia ver, através da porta, boa parte da estrada e, por um breve momento, na periferia de sua visão cansada, pensou ter visto um vulto chegando a cavalo. Ao olhar com mais firmeza naquela direção para ter certeza, no entanto, já não viu mais nada.

 A velhice está me pregando peças, pensou ela se ajeitando melhor na banqueta. A última vez que tivera clientes de fora, fora a vários meses. Um trio formado por um cantor, um tocador de violino e uma contadora de histórias. Fora uma visita aprazível que tornara a noite numa festa.

Depois que os músicos fizeram sua apresentação, a contadora de história chamada de Qareen, narrou uma história sobre feiticeiro e magias negras. Era uma mocinha pequena, alegre, encantadora e de sorriso fácil, que a encantou e ao neto.

Naquela noite, todos eles dormiram ali no assoalho da taverna, sobre peles de ovelhas. Já era madrugada quando fecharam os olhos ouvindo a narrativa empolgante de Qareen. O neto sequer conseguiu pregar o olho, assustado com os relatos reais da moça.

Dona Veiga ainda com a mente distante no passado, levou um susto quando um vulto se assomou a porta subitamente, e entrou. Era um homem alto, de cabelos desgrenhados, usando uma calça de couro cozido e uma camisa folgada como gostavam de usar os agricultores. Apesar de ser magro tinha os músculos bem desenvolvidos. Carregava uma espada longa presa às costas com uma empunhadura enfeitada de pedras preciosas. Tinha ainda uma adaga de quinze polegadas presa a cintura. Apesar de armado não tinha aparência de um guerreiro. Parecia mesmo era um homem do campo    — Quem é esse sujeito? — exclamou o barbudo se levantando da cadeira, assustado, como se tivesse vendo um fantasma. Seus lábios sorridentes se fechando num que de preocupação. Seus olhos arregalados fixavam o recém-chegado com torpor.

— Não tenho ideia, mas mataremos o miserável se se meter a besta — grunhiu o cara de fuinha, tão assustado quanto os demais. — Como pode estar aqui? Achei que não tinha ninguém na nossa cola.

Todos estavam de pé e sacaram as espadas meio atabalhoadamente. O susto inicial fora deixado a um segundo plano, pois, antes de tudo, eram homens preparados para a luta em qualquer situação.

 — Nós matamos todos os que tiveram a audácia de nos enfrentar, infeliz, e o mataremos também — disse o homem que tinha um meio elmo na cabeça. Dando ação as palavras, o homem partiu com a espada em riste.

O recém-chegado sacou da espada, ouve um brilho intenso e pareceu que o ar do recinto se encolheu somente por uma fração de segundo e ele se transformou. De repente usava uma armadura cinza com detalhes em negros azulados. Um elmo futurista cobriu sua cabeça descendo até o rosto.

O ambiente tranquilo da taverna até então, foi invadido pelo canglor de metal se chocando numa luta de vida ou morte. Com a espada na mão, o estranho se defendia e atacava com uma velocidade espantosa, enquanto o adversário atacava de forma nervosa e sem muitos cuidados. Numa estocada, o homem de elmo passou a ponta de sua espada a menos de dois centímetros do rosto do guerreiro, que num giro para a esquerda se esquivou do ataque e desferiu um golpe certeiro com a espada cotando mortalmente o lado do atacante.

Enquanto o corpo sem vida do homem de meio elmo ia ao solo em câmera lenta, os outros dois partiram para o ataque.

 — Vamos atacá-lo em duas frente, Nigri — disse o barbudo. — Já matamos homens ágeis e podemos matar de novo.

A dupla avançou com ferocidade mantendo o alvo no meio, ou tentando manter, pois o guerreiro saltava de um lado para outro com agilidade fenomenal, e se defendia dos ataques com sua espada, incansavelmente. Girava como um peão e era praticamente impossível que fosse atingido por um golpe de espada. E mesmo quando atingido a armadura que usava o protegia. A espada batia e escorregava sem causar o menor ferimento.

 — Maldito! — berrou o barbudo. — Porque não fica parado.

Com o frequente movimento os dois atacantes acabaram cansados e lentos. Em uma estocada, a espada do homem de barba voou longe ao ser interceptada pelo guerreiro de cinza. Numa fração de segundo depois, ele foi atingido pelo aço afiado do inimigo e dobrou os joelhos, com o estômago varado pela espada entrando pela barriga e saindo nas costas.

Vendo seu companheiro caindo quase sem vida, Nigri avançou em desespero intuindo que o melhor era fugir enquanto ainda tinha vida. Mas era tarde demais para qualquer reação. O guerreiro desviou sua espada e contra-atacou com a espada cortando o lado de seu pescoço. Um rio de sangue jorrou se espalhando pelo chão e Nigri caiu em espasmo ao lado de seu companheiro agonizante, que acompanhava tudo de olhos escancarados e vidrados já quase dando o grande salto para o além.Nisso, Rufus assomou à porta, vindo de fora tentando entender o que acontecia. Não teve tempo de compreender a gravidade do que acontecia ali. Uma adaga voou pelo espaço e o atingiu no coração. Com um gemido na garganta e um ar de estupefação, ele caiu na frente da porta já morto.

Dona Veiga assistiu a tudo sem se mexer de seu posto de observação. O neto que, ao ouvir o clamor do combate se postara no alto da escada vindo de um dos quartos, desceu e veio para junto da avó com os lábios branco como cera de medo.

Com passos leves como o vento, o guerreiro se aproximou do balcão guardando sua espada e recolhendo a armadura em algum bolsão em outra dimensão desconhecida. Tinha um ar satisfeito no rosto e uma tranquilidade no olhar que não transparecia ter acabado de enfrentar uma batalha.

— Quero uma cerveja, senhora — pediu ele com extrema educação.

Ela serviu a bebida que ele tomou em duas goladas. Jogou algumas moedas de prata sobre o balcão e disse:

— Os cavalos e os sacos de moedas que estão sobre eles, frutos dos saques desses assassinos, vou levar para devolver aos donos, senhora. O que encontrar com eles será seu em troca do trabalho de enterrá-los.

Sem mais nada a dizer o homem foi embora pulando por cima de Rufos à porta e recuperando sua adaga.

— Quem era esse guerreiro, vó? — perguntou Armani num misto de medo e fascínio.

— Não tenho certeza, filho, mas pela descrição que recebi outro dia, desconfio que seja o mesmo homem que invadiu e matou o rei Calamar em seu castelo.

— O rei Linus? — Armani ficou estupefato. —  O rei Linus esteve em nossa casa?

Armani correu até a porta para ver o homem ainda mais uma vez, mas ele já tinha ido. 

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