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Trajetória rumo ao desconhecido

PRÓLOGO

Um zumbido reverberou na quietude marinha.

Três estranhos objetos que mais pareciam barcos, cortavam o ar acima da lamina d’água numa velocidade estonteante. Em poucos minutos alcançaram a ilha onde aterrissaram na praia de areia branca. De um dos “barcos” desceram duas pessoas vestidas de branco e cabeça desprovida de cabelos.  Caminharam por um trecho da areia onde pararam examinaram o lugar e se puseram a cavar com um remo largado por ali. Logo retiraram um embrulho comprido e roliço envolto em tecido e levaram para o “barco voador” e partiram para o interior da ilha.

Ali descobriram uma aldeia de nativos, sobrevoaram e atacaram com extrema violência.

01

Ano de 1521

Luís Castilho lavava o convés quando ergueu os olhos e viu o tempo ao longe. Nuvens ralas e escuras se formavam na linha do horizonte, a oeste, distante dali. Não deu importância àquilo e continuou com seu árduo trabalho. Não parecia nada demais.

Tinha cerca de vinte anos e o seu semblante transparecia o cansaço, imposto pelo trabalho constante e poucas horas de descanso por dia. Embarcar naquele navio rumo ao desconhecido não fora uma escolha sua. Sequestrado no cais de Barcelona, onde procurava por trabalho na zona portuária para ajudar a mãe, viúva, a tratar de seus nove irmãos menores, ele agora era um escravo sujeito às vontades do capitão Pedro, o cruel, um homem rude e ignorante, que comandava o grande navio Netuno de três mastros, que singrava os mares com ar de superioridade. 

— Eeeeei, aí de baixo — gritou o homem da gávea extremamente exaltado. — Tem uma grande faixa de terra à nossa esquerda, — apontou. — Acho que é uma ilha.

O Capitão Pedro, que observava por sobre a amurada tranquilo o sol baixo no horizonte, passou o leme ao contramestre e, com agilidade inesperada para um homem de meia-idade, subiu pelas cordas do velame até o cesto da gávea e ficou observando para o ponto onde o observador apontava.

“Sim”, pensou o capitão com um sorriso pouco comum nos lábios, “finalmente estamos chegando a esse fim de mundo”. Um lugar que sonhava encontrar desde que era apenas um marujo iniciante. Diziam muitas coisas daquele lugar. Agora ele teria a prova definitiva. Esperava retornar à civilização com o porão do Netuno abarrotado de ouro e prata. Se houvesse um décimo de verdade no que contavam nos portos que passou nos últimos anos, retornaria com muito ouro e prata e muito rico. Não importava os perigos que teria que enfrentar.

— Fique de olhos abertos — ordenou ao observador, enquanto fazia sinais para o contramestre no timão para que mudasse a rota para o ponto desejado. — Quando estivermos bem próximos me avise que lançaremos âncora e seguiremos de chalupa até encontrar o que procuro.

Deu ainda uma última olhada e desceu para o convés com uma fisionomia alegre que não lhe caía bem, pois os marujos não conheciam esse lado do carrasco que os comandava.

Luís continuava seu trabalho de limpeza e, apesar da curiosidade a lhe cutucar a alma, não era louco de largar o serviço e ir observar junto com os demais que, contagiados pela euforia do capitão, tinham suas atenções voltadas para o lado onde ficava a faixa de terra, objeto de desejo do capitão.

Ao longo dos dois meses navegando, ele ouvira muita coisa sobre um mundo novo que se acreditava existir além do oceano conhecido e perigoso. Sua fantasia não conseguia ir tão longe e achava ser apenas a loucura do capitão a lhe pregar peças. De qualquer maneira, todos os tripulantes do navio corriam perigo de morte navegando por aqueles mares habitados por monstros marinhos de toda a espécie. Ao menos era o que se dizia. Não haviam ainda encontrado nenhum, exceto grandes baleias, inofensivas para quem mantivesse distância. Com seu tamanho descomunal, elas poderiam ser um perigo se batessem no navio.

Enquanto ouvia a algazarra dos tripulantes, Luís ergueu os olhos para o lado contrário da suposta ilha que se aproximava lentamente, na medida em que o navio avançava, e as nuvens ralas que vira pouco antes, agora ganharam volume e avançavam com rapidez e em poucos minutos o céu escureceu e o dia virou noite, riscado por raios e abalado por trovões.

Pegos de surpresa, os marujos correram abaixar as velas, mas de nada adiantou. Empurrados por forte ventania, a embarcação foi levada para grandes recifes que se formavam a certa distância do paredão rochoso que constituía a ilha.

Gritos de pavor se fizeram ouvir acima do barulho da água e do vento, quando o navio rangeu inteiro ao se chocar com as rochas de grandes proporções, e foi a pique sugado por um torvelinho de água.

A última coisa que Luís Castilho pensou enquanto era tragado por aquela imensidão de água, foi em sua mãe e irmãos… E que nunca mais os veria de novo.

* * *

O bater das ondas na rocha o acordou.

Luís Castilho sentou-se ainda meio zonzo na areia branca da praia e deu uma olhada ao redor. Um cenário totalmente desconhecido o cercava e assustava. A praia onde estava não tinha mais que 40 ou 50 metros de extensão e, nas laterais, imensas rochas impediam que alguém seguisse por ali. Em sua frente o mar azul desaparecia de vista em pequenas ondas tranquilas movimentadas por uma suave brisa. Ao fundo havia uma floresta de grandes árvores entrelaçadas de cipós e recobertas de musgos num terreno montanhoso de perigos escondidos. Uma selva assustadora que desanimou o rapaz. Mesmo assim estava feliz por ainda estar vivo e inteiro. Não esperava tanto depois do que aconteceu. Só que agora sentia-se prisioneiro da natureza. Cercado por rochas, o mar e a floresta desconhecida, desarmado, as chances de sobrevida eram mínimas.

— Por que a vida sempre tem que ser assim? — perguntou-se em voz alta, estranhando a própria voz. — Sempre na corda bamba a um fio de navalha de encontrar a morte. Mal conseguia se lembrar de ter conseguido vir à tona e nadar até a areia debaixo da tempestade, onde desmaiou de exaustão.

Examinou melhor as rochas da esquerda e tentou escalá-la, mas não conseguiu. Sem um barco, só lhe restava se aventurar na mata. Era isso ou ficar ali até morrer de fome e sede. De seus colegas, ou o navio, não tinha sinal. Teriam morrido todos?

O farfalhar de galhos chamou-lhe a atenção para a floresta e ele demorou para acreditar em sua visão.

Uma jovem negra, usando roupas toscas feitas de fibras tiradas de árvores, caminhou pela areia e parou a poucos passos dele e ficou encarando-o com grandes olhos escuros e penetrantes.

— Quem é você? — pediu Luís, desconcertado. Se tinha algo que não esperava era encontrar uma mulher naquele lugar esquecido por Deus. Ainda mais linda como era. Seus cabelos negros eram crespos e volumoso e escorriam por seus ombros até o meio das costas.

A morena nada disse. Apenas sorriu, mostrando dentes brancos e perfeitos.

Luís Castilhos sentiu outra presença às suas costas, nas rochas, e se virou assustado. Três homens negros seminus saltaram das rochas com agilidade e o dominaram com facilidade. Atingido na cabeça, desmaiou no mesmo instante.

* * *

Algum tempo depois, Luís acordou com uma tremenda dor de cabeça. O cenário havia mudado e sua condição também. Estava agora amarrado numa estaca nos arredores de uma vila construída de barro e folhas de palmeira. As casas de forma circular foram dispostas lado a lado e formavam uma meia-lua. Luís estava preso à estaca na entrada da vila ladeado por outros dois marujos do Netuno. Ele mal os conhecia. Durante todo o tempo de navegação ele fora ignorado pelos marujos que se achavam melhores do que ele. Um humilde “limpa chão” sem eira nem beira.

— Quem é essa gente? — pediu ele ao rapaz de rosto abatido preso no poste ao lado dele.

— São demônios! — respondeu o homem com olhar distante. — São demônios e estamos no inferno.

Luís não compreendeu o que o homem dizia. Parecia não estar no seu melhor juízo. Tentou saber mais, mas nenhum dos dois prisioneiros quis lhe responder as indagações. Notou, entretanto, que havia mais dois postes vazios ao seu lado com manchas de sangue secas.

Ao entardecer, os nativos acenderam uma grande fogueira no centro da aldeia e, sob o som de tambores, os marujos ao lado de Luís foram arrancados, sob veementes protestos, do poste onde passaram o dia presos e levados para perto da fogueira.

Horrorizado, Luís viu seus colegas de navio serem mortos a base de pauladas e, com ferramentas primitivas, estripados e esquartejados e jogados num grande panelão de barro onde foram cozidos com temperos da floresta.

Afinal Luís entendeu que eles nada mais eram que animais a serem abatidos para servirem de alimento aos nativos.    

Estar desse lado da cadeia alimentar era assustador e fazia as pernas tremerem.

Os nativos festejaram até tarde da noite e beberam de um líquido estranho que passaram de mão em mão. A bebida devia ser alcoólica, pois depois de um tempo a maioria dos homens dormia largado pelo terreiro da aldeia.

Luís Castilho assistiu a tudo resignado. Embora tentasse o tempo todo se livrar das amarras que o prendia, não conseguia sucesso. Certamente seria, no dia seguinte, a sua vez. Essa possibilidade de ser estripado como um porco não lhe fazia bem aos nervos. Sentia que ia enlouquecer.

Na madrugada, ele cochilou por alguns momentos e foi acordado por mãos suaves que desfaziam os nós que o amarravam. A fogueira havia se consumido e apenas sua brasa emitia uma leve claridade. Ao ser solto, caiu de joelhos enquanto esfregava os pulsos que sangravam pelo esforço que fizera na tentativa de se libertar. Um cão peludo e magro veio lamber-lhe o rosto com carinho.

— Sai pra lá, bicho!

Levantou-se enquanto se perguntava qual o sentido para que o libertassem naquele momento. Ao se virar deu de cara com a jovem do dia anterior. A mocinha de cútis negra de olhar profundo. Desde aquele momento que não a vira mais. Pensara até que imaginara a presença dela. Mas fora real. Lá estava ela sorrindo para ele com seu olhar fixo e perturbador.

A moça estendeu a mão e pegou com firmeza nas dele e o puxou em direção à floresta. Ela o ajudava a fugir, compreendeu. Porque fazia isso ele não fazia ideia. Mas, fosse porque fosse, era um tipo de oportunidade que não se jogava fora.

Quando o dia amanheceu, os dois jovens e o cão estavam muito longe daquela aldeia sinistra. Luís sentia uma indescritível alegria por estar vivo e livre que podia-se dizer que havia nascido de novo.

* * *

Por toda a manhã eles correram pela floresta em direção norte. Luís podia ouvir o bater das ondas do mar nas rochas, embora não pudesse vê-lo.

A mulher tinha uma facilidade para se embrenhar na mata que desnorteava Luís que, quando menos esperava, ficava para trás. Ele gostava de pensar que era ágil e esperto, pois fora criado solto nas ruas e arredores no sul de Barcelona na Espanha. Entretanto aquela mulher aguerrida de pele escura o humilhava com seu conhecimento e destreza em correr no meio do mato.

Às vezes ela desaparecia à sua frente e ele temia ser deixado para trás, abandonado naquela região inóspita e desconhecida. Mas logo Luís a alcançava sentada em algum tronco ou rocha a esperá-lo, com um sorriso meigo e compreensivo nos lábios. Era uma mulher notável e de singular beleza que Luís nunca tinha visto igual.

Mas ela não dava folga para descanso. Assim que ela a via retomava o percurso e ele era obrigado a segui-la mesmo com a respiração cansada pelo esforço. O cão magro dela os seguia de perto, às vezes desaparecia na abundante floresta e, quando menos esperava, reaparecia em sua frente com algum animal de pequeno porte na boca.

Em um certo momento, Luís não suportou mais a fadiga extrema que estava sendo imposta e sentou em um tronco caído para descansar. Não havia motivo para tanta correria, pensava ele, exausto. Não entendia o porquê de tanta pressa de sua colega de fuga.

No silêncio da floresta apenas quebrado pelo cantar dos pássaros nas árvores, Luís ouviu os latidos de cães muito longe dali. Era nitidamente uma corrida de caça. Luís fechou os olhos e respirou fundo o ar limpo da mata e relaxou. Tinha sede e fome, mas o que mais incomodava eram as dores musculares por todo o corpo.

Ouviu um farfalhar de folhas ao seu lado e abriu os olhos assustado. Era apenas sua protetora que retornara e o encarava com olhar insatisfeito por ele estar parado.

— Estou morto de cansado, moça. — Luís gesticulou, tentando fazê-la entender suas necessidades.

Ela resmungou, apontou para os latidos ao longe que se aproximavam com certa rapidez e ele finalmente compreendeu que corriam perigo. Os latidos eram de cães que os procuravam. Estavam sendo caçados.

Ao ver que ele entendeu o perigo, a mulher pegou em sua mão e puxou-o, obrigando a continuar correndo pela trilha. Era uma questão de vida ou morte. Era correr ou morrer. Não havia outras alternativas no momento. A força nas pernas era sua única arma de defesa. Só mantendo distância estariam salvos.

Por algum tempo, conseguiram manter a dianteira, mas aos poucos ficava evidente que não conseguiriam escapar, a distância se reduzia drasticamente. Os perseguidores pareciam que não se cansavam nunca e certamente não largariam o osso por nada. Luís já percebera que os sabujos eram do tipo que não desistiam nunca.

No final do dia, Luís e sua companheira chegaram a uma clareira onde desabaram. A exaustão e a fraqueza tomaram conta. Já não aguentavam mais. Sem tempo para procurar por algum alimento, eles não suportavam mais. Os dois mal comeram algumas frutas no decorrer de todo o dia.

Um rosnado e eles se levantaram ainda trêmulos. Três cães negros imensos os cercavam, mostrando dentes grandes numa bocarra pavorosa e babenta. Sem armas e cansados estavam perdidos. Já não havia esperança. Nem ao menos uma pedra tinha ao alcance das mãos.

O cão da esquerda, que parecia ser o líder, avançou em direção aos dois e foi atacado de surpresa pelo cão magro que os acompanhava e se mantivera à espreita na mata, até então. Ao ver sua dona em perigo o animal, apesar de sua visível pequenez diante os inimigos, pulou na garganta do líder da matilha e mordeu com valentia. Um tropel de luta e rosnado ferozes invadiu a selva ao entardecer. Uma luta desproporcional e insana quando todos os cães atacaram e trucidaram o menor e se alimentaram de sua carne.

Aproveitando o sacrifício honroso do cão de estimação, Luís e a mulher embrenharam-se na selva desaparecendo de vista. A nobre valentia do animal lhes deu mais algum tempo de vida e de esperança.

Logo depois, dois negros de tanga de couro, suados e com a pele cheia de arranhões, usando lanças com ponta de osso, chegou ao local onde seus animais ainda se alimentavam da vítima ao invés de perseguir os fugitivos. Irritado, um deles bateu forte com a lança no lombo do cão líder que rosnou para ele com raiva. Depois de alguns gritos de incentivo fizeram com que os cães reiniciaram a perseguição com força renovada.

Luís e sua companheira avistaram um pequeno rio e entraram nele seguindo por seu leito. Talvez conseguissem enganar os faros dos cães e escapar de sua sanha de sangue. Embora fosse pouco provável diante à capacidade desmedida dos faros dos animais que não perderam sua trilha por todo o dia. Ainda assim era uma possibilidade.

Rapidamente os raios solares iam desaparecendo no horizonte. Em pouquíssimo tempo estariam no escuro. No breu da noite suas chances se reduziriam drasticamente. Precisavam encontrar um abrigo seguro para passar a noite quando o perigo seria ainda maior. Mas onde?

De repente se viram cercados pelos cães novamente. Agora estavam acompanhados por seus donos. Dois caçadores de feições intimidadores. Com água até os joelhos correr não era uma opção. Luís tinha que se conformar que as chances agora se reduziram a zero. Até que tinham ido longe.

Os cães avançavam rosnando ferozmente.

Os caçadores mostravam seus dentes brancos num riso de escárnio como que dissessem: Adiantou tanto corre-corre?

Um silvo cortou o ar seguido, quase simultaneamente, por um segundo e os dois caçadores fecharam a cara numa máscara de dor e caíram na água atingidos por flechas.

Os cães, ao farejarem novos alvos e mais perigosos, mudaram de direção, mas foram atingidos também por atiradores certeiros. Em menos de trinta segundos o perigo iminente desapareceu. Luís abraçou sua amiga num ato emocional e impensado. Aliviado, ele viu uma dupla de rapazes, ainda muito jovens, sair da mata e aproximar-se da beira do rio. Seus salvadores eram loiros e seus cabelos se estendiam até o meio das costas. Cada um deles tinha uma besta na mão e uma aljava com flechas pendurados na cintura.

Feliz, Luís, segurando sua companheira pela mão fez menção de sair em direção à margem. Os dois garotos, com movimentos rápidos, apontaram a arma para eles deixando claro que não eram amigos.

Afinal o perigo ainda não havia passado.

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