Um vento gelado soprava do sul impiedosamente, açoitando os transeuntes que precisavam estar na rua àquela hora da noite. O inverno mal tinha chegado e já demostrava, na prática, que seria rigoroso como as previsões alardeavam, há tempos.
Debaixo de uma marquise mal-iluminada de uma rua lateral, quase sem movimento no centro da cidade, um mendigo se encolhia enrolado em um cobertor encardido e fino. Mesmo com uma proteção de papelão embaixo do corpo, o frio que subia da calçada juntamente com o vento maltratavam o homem que recebia o castigo com resignação. Fosse só o frio que sentia já se daria por satisfeito, mas o caso era que estava faminto também. Com o rigor do inverno, o corpo humano necessita de mais energia para se manter aquecido e ele se alimentara muito mal naquele dia. Tudo que conseguira fora dois pães velhos e algumas frutas estragadas que juntara no lixo. Os dias eram difíceis para quem não tinha teto e precisava morar na rua. Quase ninguém se condoía e ajudava aqueles desafortunados que mal sobreviviam um dia após o outro. Não era raro um ou outro chamá-lo de vagabundo e mandá-lo trabalhar. Como se fosse fácil conseguir emprego usando roupa suja e sem um endereço fixo. A aparência de um morador de rua não era das mais apresentáveis. De qualquer maneira, quando a rasteira da vida levava alguém a morar nas ruas, a autoestima ficava tão baixa que a pessoa não queria emprego nenhum, só queria curtir o fundo do posso sem mais preocupação.
Com o queixo batendo sem controle, o mendigo apertou mais o cobertor na tentativa de se esquentar, sem lograr êxito. Talvez aquela fosse sua última noite de sofrimento. Ouviu alguém se aproximando e se virou quando pressentiu estar sendo observado. Um homem bem vestido com um sobretudo e de barba feita o olhava com tristeza no olhar. Tinha na mão um saco pardo de onde exalava um cheiro bom.
— Olá, rapaz — disse o homem. — A noite está fria, não é mesmo?
Acostumado a ser invisível perante a sociedade, o mendigo se levantou com dificuldade e sentou-se para melhor compreender o que o recém-chegado queria com ele.
— Lhe trouxe um lanche — disse o passante lhe entregando o embrulho. — Pensei que talvez tivesse fome.
O mendigo riu com o estômago roncando.
— Talvez?
Percebendo que o mendigo sentia muito frio, o homem retirou seu sobretudo e deu ao mendigo que o vestiu com lágrimas nos olhos. Estava emocionado com a gentileza daquele estranho.
— Obrigado! — agradeceu.
O homem já estava indo embora quando parou e voltou atrás.
— Por que não volta para casa, Aparício? Tem uma casa, mulher e dois filhos ainda pequenos. Estão preocupados com você.
O mendigo passou a mão na cabeça onde tinha um ferimento mal curado debaixo da farta cabeleira desgrenhada. Ainda que não se lembrasse, fora vítima de um assalto e perdera a memória ao ser atingido por uma bala de raspão na cabeça.
— Não conheço nenhum Aparício, moço. Sou sozinho no mundo nunca tive ninguém.
— Está enganado, Aparício — insistiu o homem. — Você tem uma família que ficará feliz com seu retorno. Você é um advogado, Nunca foi exatamente um cidadão exemplar, sempre arrogante, com o nariz empinado. Mas tem o direito a uma segunda chance.
Pensativo, Aparício devorava seu sanduíche com voracidade.
O visitante tirou papel e caneta do bolso do suéter e escreveu um endereço. Entregou o papel juntamente com uma nota de cem reais ao mendigo.
— Esse dinheiro é seu — explicou. — No entanto o aconselho a meditar sobre sua vida e no que pode encontrar nesse endereço que lhe dei. Pode usar o dinheiro para comprar comida e cachaça por alguns dias, ou pode usá-lo para pegar um táxi e ver o que o espera. O critério é seu. Somente seu.
Sem mais nada a dizer, o homem seguiu seu caminho deixando o mendigo pensativo e curioso.
— Não me disse seu nome, senhor? — gritou o mendigo antes que o visitante desaparecesse de suas vistas.
— Me chamo Jesus, Gabriel de Jesus — respondeu o homem já dobrando uma esquina.
***
De manhã o dia amanheceu ensolarado, embora ainda muito frio. Da janela do segundo piso de um belo sobrado, uma mulher observava com atenção uma movimentação atípica na casa em frente.
— O que houve, Magda? — perguntou uma voz vinda da cama.
— O Aparício voltou — disse ela emocionada. — Está com uma aparência horrível embora esteja usando um sobretudo de marca. — A mulher se voltou para o marido ainda deitado. — Engraçado. Ontem você voltou para casa sem o seu sobretudo que comprou em Nova York, e agora vejo aquele homem que você nunca gostou usando um igual.
O homem riu da estranheza da mulher.
— O que você sabe sobre isso, Gabriel de Jesus? — sondou a mulher.
— Nada de mais, querida. Reconheci o Aparício na rua outro dia, e ontem à noite lhe ofereci uma oportunidade de voltar para sua família.
Gabriel foi até a janela e, abraçado à mulher, ficou olhando a alegria da família que recebeu de volta um ente querido que já davam como morto.
Disse então emocionado por fazer a diferença:
— Às vezes Deus dá a oportunidade de nós mesmos fazermos um pequeno milagre.