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A última viagem

 Completamente perdido, o homem caminhava a passos lentos pela ruazinha estreita pintada de azul. Não conseguia se lembrar como viera parar naquele lugar incomum e nem o que fazia ali; um imenso cemitério que ia além de onde suas vistas alcançava.

 O que estou fazendo aqui?

 Por mais que se esforçasse, o homem não se lembrava sequer de seu nome. Ao longe, uma redoma de ouro reluzia sob a luz solar e resolveu seguir naquela direção. Embora estivesse desmemoriado e perdido, o homem sentia uma paz que poucas vezes sentira em sua vida turbulenta. Uma paz que transcendia a tudo que pudesse ter vivido até àquele momento de confusão mental em que se encontrava.

 Conforme ele foi se aproximando da redoma pôde ver que centenas de milhares de pessoas silenciosas, vindas de todos os cantos do cemitério, seguiam na direção da redoma e entravam nela. Parecia impossível que tantas pessoas juntas fossem capazes de serem tão silenciosas. Ele se misturou à multidão e também entrou na redoma. Pensou que não caberia tanta gente lá dentro, mas o lugar estava, misteriosamente, com muitos lugares vazios. O homem sentou-se num lugar vazio, entre algumas pessoas, e ficou observando uma espécie de palco onde havia duas portas reluzindo com a luz do teto, ladeadas por dois anjos. As portas ficavam a poucos metros uma da outra e vez ou outra alguém ia até elas e entrava. Uma então se abria, apenas o suficiente para que a pessoa passasse, e a fechavam novamente. Uma delas reluzia com uma luz radiante e convidativa e podia se perceber a alegria de quem entrava por ela. A outra, ao contrário, quando aberta emitia uma sombra escura, que aparecia e puxava a pessoa, com evidente tristeza, para dentro.

 Será isso um sonho?

Depois de um longo tempo assistindo as mesmas cenas se repetirem com novos personagens, o homem sentiu sono, dormiu e sonhou.

Parecia um sonho, mas logo ele percebeu que era sua vida pregressa passada a limpo.

Seu nome era Claudionor Gonçalves. Com apenas nove anos, ele assistira, inconformado, a seu pai, bêbado, surrando sua mãe. Tentara fazê-lo parar e levou um safanão, caindo longe. Do chão onde estava, incapaz de ajudar sua mãe, ele via seu pai maltratá-la enquanto dizia palavrões com ódio e rancor. Claudionor se levantou irritado, foi até a cozinha, pegou uma faca afiada que sua mãe usava para cortar carne, e enterrou-a nas costas de seu pai, perfurando-lhe o pulmão esquerdo. O velho perdera a coragem e ficou urrando de dor por longo tempo, até morrer. Claudionor não saiu de perto e assistiu a agonia de seu genitor com uma indisfarçável alegria nos lábios. Descobrira naquele dia que podia muito e ia se aproveitar disso ao longo de sua vida. Dali em diante ninguém mais ia maltratá-lo.

 As lembranças mudaram para quando Claudionor, já adulto, fora visitar sua mãe no asilo. Ela sequer levantara a cabeça para olhá-lo. Desde a morte do marido que ela nunca mais falara com ele. Ela passou a odiá-lo e culpá-lo pela sua viuvez. Nunca o perdoou por tê-la livrado de um destino de sofrimento e dor.

 Com o passar dos anos, Claudionor se transformou em um bandido afamado e quem quisesse enfrentá-lo facilmente ficaria a sete palmos de terra.

 A última lembrança foi a de um assalto a mão armada em um mercado. Tudo deveria ter corrido bem, mas, ao fugir com uma moto roubada, dera de cara com uma viatura da polícia e na troca de tiros foi baleado e…

 Morto?!

 Então era isso, afinal de contas. Ele estava morto e chegara a hora de prestar contas de seus feitos. Suas ações em vida davam a sentença agora.

 Com um semblante abatido, Claudionor se levantou e seguiu até a porta da esquerda, a porta das trevas. Entrou por ela sendo sugado pela escuridão.

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