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O REGRESSO

Capítulo 1

O fusca conversível vermelho saiu da rodovia BR 277 na altura do Km 579, à esquerda de quem vai para Curitiba, e seguiu por uma estrada asfaltada em direção norte. Mal começou a descer a via, que costeava o alambrado da área industrial existente ali, o motorista pôde ver a penitenciária estadual de Cascavel (PEC), que estava movimentada naquele momento. O som de gritos de medo ou dor de uns, e de encorajamento de outros, quebrava o silêncio noturno.

Era por volta de 22 horas de uma noite quente de verão. Mais uma rebelião estourava em uma penitenciária no país.

Carlos Alberto dirigia sem pressa pela via mal iluminada e logo teve que parar e estacionar. Durante toda a tarde ouvira, através dos meios de comunicação, a falação sobre a rebelião dos presos. Motivados por maus tratos, refeições de baixa qualidade e por alguma facção criminosa a lhes dar suporte de fora, um grupo de amotinados conseguira dominar os carcereiros e estavam depredando o patrimônio público. Naquele momento alguns deles estavam sobre o telhado quebrando telhas e arremessando pedaços nos PMs, que acompanhavam de longe, fazendo uma barreira humana para evitar que tentassem fugir. Aproveitavam ainda para ir à forra sobre velhas inimizades e maltratavam seus desafetos. Uma fumaça preta subia vinda do pátio onde outro grupo ateara fogo em colchões — valia tudo para chamar a atenção de fora — dados ainda não oficiais davam conta de que havia pelo menos três mortos e dezenas de feridos.

Do lado de fora do cercado do complexo penitenciário, um grande grupo de pessoas fazia vigilância com grande preocupação. Eram pais, filhos ou esposas de detentos que não arredavam o pé dali por nada.

Apesar de ter passado o dia com o motim, o grupo de detentos continuava incansável sobre o telhado a emitir palavras de baixo calão e arremessar objetos nos policiais que, resignados, acompanhavam tudo sem intenção de intervir, seguindo as ordens superiores de não reagirem às provocações.

Carlos Alberto se misturou a multidão e ficou observando, tomando pé da situação. Até mesmo a mídia estava sendo mantida afastada sob o pretexto de evitar acidentes. Era óbvia a interferência política para evitar o máximo à exposição dos acontecimentos dramáticos que aconteciam ali. Um parâmetro negativo para o governo. Um tipo de propaganda que nenhum político gostava. Através daquela situação insana ficava evidente a falta de interesse e de investimento dos governantes no setor, que carecia urgentemente de ações mais enérgicas.

Carlos Alberto se acocorou um pouco afastado e ficou estudando o cenário. Naquele instante, dois indivíduos com panos em torno do rosto arrastavam um dos reféns, seminu, para a beira do telhado, com cerca de quinze metros de altura. E ficaram ameaçando jogá-lo lá do alto. A crueldade de alguns deles não tinha limites. Infelizmente as leis não são muito precisas em alguns casos. Na mesma cela onde eram mantidos criminosos de alto teor de periculosidade, que dificilmente teriam recuperação, pois entre muitos outros crimes traziam na bagagem assassinatos de vários cidadãos, havia também outros com crimes menores que, com um pouco de boa vontade política e um tratamento digno, poderia sim, ser recuperado e depois de pagar sua dívida com a sociedade, voltar ao convívio comum. Mas mesmos esses recuperáveis acabam se perdendo de vez naquela espécie de escola de crimes, onde a lei é a de quem pode mais, de quem tem mais dinheiro para comprar “favores” e se dar bem, mesmo estando trancafiado.

O indivíduo encapuzado continuava a segurar seu refém, perigosamente, à beira do telhado. Carlos Alberto se levantou e voltou para seu fusca. Já tinha visto o suficiente. Precisava intervir e fazer alguma coisa. Não foi por vontade própria que viera ali. De alguma forma o destino o incumbiu de resolver certos problemas quando o colocou em contato com alienígenas e ele ganhara o traje.

Como poderia ficar só assistindo o desenrolar dos acontecimentos quando tinha o poder para resolver o problema? É verdade que esses mesmos problemas deviam ser resolvidos ou simplesmente evitados pela classe política em toda a sua esfera, que são muito bem remunerados. Mas fazem corpo mole, vista grossa, como se não fosse com eles.

Por que então cada cidadão nesse país paga seus impostos?

  Carlos Alberto embarcou no fusca, deu meia-volta pelo meio das plantações de soja que cresciam na beira esquerda da estrada e voltou por onde veio. A PEC fora construída no final da área industrial e entorno dela, existia terra para lavoura, um pequeno bosque e as fábricas na parte que fazia frente a BR 277.

O fusca saiu na rodovia e seguiu em direção a Curitiba por alguns quilômetros, se distanciando das construções e avançando na escuridão. O movimento de veículos naquele momento era pequeno e, assim que uma carreta passou por ele em sentido contrário, Carlos Alberto acionou um botão escondido embaixo do painel do veículo e ele, com suaves motores elétricos a funcionar, se transformou. Em poucos segundos o fusca conversível ganhou um par de pequenas asas e ganhou uma forma mais achatada, uma cobertura, e novas cores cobriu sua fuselagem e alçou voo, agora era uma nave que singrava o céu noturno. No mesmo instante, obedecendo a um comando mental, o traje saiu do porta luvas e, como uma revoada de abelhas, pequenos circuitos cobriram o corpo de Carlos Alberto e se conectaram se transformando em seu traje verde ardósia com detalhes em branco. As armas de pulso vieram por último e se prenderam em seu antebraço com um clique. Agora estava pronto para a batalha.  Ele dava lugar ao Homem anônimo.

A nave negra fez um grande círculo no céu e tomou o caminho da penitenciária.

À medida que se aproximava pôde ver, sob o luar, o cenário como um todo. Parecia algo surreal e totalmente descabido. Uma densa nuvem de fumaça negra subia do pátio/solário onde se acumulavam pelo menos cinquenta detentos, onde fizeram um amontoado de colhões que, ao queimar, lançava a fumaça tóxica no ar.

O que acontecia sobre o telhado era deprimente, um absurdo sendo executado por mãos humanas; se é o que se podia chamar aquelas feras desse modo. Pareciam com animais selvagens que cultivavam o gosto pela tortura a um semelhante. 

O Homem Anônimo ficou observando ainda de longe um dos encapuzados, havia ao menos uma dúzia deles no telhado, desferir bordoadas com uma barra de ferro no seu refém, completamente subjugado com as mãos amarradas às costas.

Sob o olhar revoltado de Anônimo, o detento arrastou o indivíduo e o lançou lá de cima, com um grito de vitória, como se seu ato fosse digno de comemoração. Ele se voltou então e agarrou outro que estava sendo mantido preso pelos demais e o arrastou até beirada do telhado, enquanto desferia pancadas em suas costas. Como era possível existir alguém assim? A maldade humana, às vezes, não conhece limites.

Quando percebeu a aproximação da nave o encapuzado largou o refém que caiu rente com a beirada. Mais alguns centímetros e ele faria um voo de quinze metros de altura. Com muita sorte podia sobreviver apenas com alguns ossos quebrados.

Todos os amotinados se voltaram para o céu brandindo seus estoques e barras de ferro ameaçadoramente. Nada parecia impingir medo àqueles detentos sedentos de sangue.

“Idiotas” pensou Anônimo com um sorriso amargo. E disparou.

Da parte inferior de sua nave, onde um dispositivo retrátil surgiu, uma onda de raios azulados partiu em leque, atingiu todos os presidiários de uma vez só e fez com que eles desabassem desacordados. 

O Homem Anônimo queria ver eles se acharem agora. O ser humano era um grãozinho de poeira no universo e não podia pensar que era invencível, por que não era. Ninguém era.

Ele aterrissou a nave no telhado, agora silencioso. Somente o refém amarrado estava acordado, perigando despencar. O Homem Anônimo desceu da nave e o arrastou para um lugar seguro, mas não soltou sua mão. Não era tão ingênuo de acreditar que ele pudesse ser boa pessoa porque com certeza não era. Não se encontrava ali por acaso. Podia ser um assassino vil tanto quanto o outro que o maltratava. Caberia aos policiais fazerem a distinção.

Do solário um silêncio assustador se fez presente. Os detentos que se encontravam ali não estavam compreendendo o que se passava, mas logo iam saber que a ordem chegou através daquela nave.

Usando o modo pular do traje o Homem Anônimo saltou do telhado e aterrissou no meio do círculo de detentos também armados com estoques e barras de ferro. Quando viram que se tratava apenas de um intrometido, ousaram acreditar que as coisas continuariam como estavam. Grande engano pensar assim. Iam descobrir que não podiam tudo.

Eles avançaram, todos de uma vez, fechando o círculo, de armas em punhos. Anônimo saltou para trás com uma pirueta e caiu a cinco metros de distância. Então disparou com as duas armas de pulso ao mesmo tempo, atingindo os da linha de frente que foram ao chão com um gemido.

Ao perceberem que não seria tão fácil, os demais pararam.

— Voltem para suas celas — ordenou Anônimo imperioso. — A baderna acaba aqui e agora.

A maioria, confusas com algo tão inesperado, parecia propensa a obedecer, mas alguns que estavam na frente ainda não queriam se dar por vencidos.

— Você não tem nada com isso, estranho — disse um deles com raiva. Tinha uma cara de mau, um olho inchado e roxo e um estoque na mão esquerda que brandia com desenvoltura. — Suma você daqui e nos deixe em paz. A rebelião só terminará quando formos ouvidos ou mortos.

Homem Anônimo balançou a cabeça negativamente e disse:

— Não, você está enganado. Tudo termina agora e sem nenhuma morte. Não será com violência que conseguirão seus direitos se é que ainda tem algum.

O homem de olho roxo deu um passo à frente e uns três ou quatro o seguiram.

— Ninguém nos impedirá de fazermos o que queremos, — disse. E avançou com o estoque em riste, tentando furar a barriga de Anônimo que saiu para o lado e desferiu um potente soco no olho bom do detento, derrubando-o com violência. Seus companheiros também tentaram. Foram recebidos com uma descarga da arma de raio e caíram ao lado.

O Homem Anônimo pôde ver o desânimo nas faces dos demais. A rebelião estava terminada.

— Deixem suas armas aí e voltem para as celas, — pediu com educação Anônimo. Um a um eles obedeceram e, cabisbaixos, seguiram pelo caminho das celas que conheciam muito bem.

Ia ser difícil mantê-los naquele presídio. Tudo estava revirado, boa parte das grades das celas arrancadas, os colchões queimados e tinha lixo espalhado por todo lado. Havia ainda alguns corpos espalhados, mortos de forma cruel. Uns foram separados da cabeça, outros queimados e, pela posição e a fisionomia de dor, ficava evidente terem sido queimados vivos. 

Carlos Alberto, com o estômago embrulhado, saltou para o telhado, embarcou na sua nave e partiu. Pôde ver enquanto se distanciava que os policiais invadiam o local, certos de que tudo estava resolvido. Pelo menos por hora.

O sistema presidiário brasileiro, da forma que está, é uma bomba relógio prestes a explodir. Era só esperar para ver onde seria a próxima rebelião.

“Infelizmente”, pensou Anônimo, “é um tipo de coisa que nenhum super-herói do mundo pode dar jeito”. E nem era assim tão difícil. Se os recursos adquiridos com os impostos fossem investidos do jeito certo, tudo podia ser diferente.

Quem sabe um dia…

Capítulo 2

Um travesseiro o atingiu no rosto e Carlos Alberto acordou com um susto e sentou-se na cama.

— Vai dormir o dia todo, dorminhoco? — perguntou Mariana sentando ao lado dele com um sorriso estampado no rosto. — Já é quase meio-dia.

Ele voltou a deitar-se com preguiça.

— Esqueceu que minha firma faliu e que estou desempregado no momento? — resmungou ele fingindo mal humor. Não que lhe faltasse motivos para isso. Sua longa viagem através do espaço fora uma experiência única e extraordinária. Mas quando retornou descobrira que os dois meses ausente fora uma catástrofe para seu negócio. Seu sócio Luciano Urso fora sequestrado por bandidos e obrigado a levá-los em seu avião, para algum lugar desconhecido e estava desaparecido desde então. Não sabia se estava vivo ou morto. Não tinha a menor ideia do que aconteceu com ele.

Com o sumiço do sócio e sua longa viagem, mais de dois meses sem comunicação, acabara por falir sua empresa de táxi aéreo. Eram dois monomotores novos financiados que, trabalhando bem o mês todo davam um bom retorno financeiro que pagava o empréstimo e ainda sobrava um bom lucro. Mas de repente os dois pararam de trabalhar e complicou tudo.

Naquele momento seu avião já devia ter sido levado por falta de pagamento.

Mariana subiu em cima das costas dele e começou a massageá-lo.

— Você está falido, querido, mas eu não. — Disse Mariana sempre alegre. — Talvez eu possa lhe dar uma mão para reerguer sua frota.

Carlos Alberto ficava feliz com a alegria dela. A viagem ao espaço exterior que fizeram não foi à maravilha que esperavam, passaram por dificuldades absurdas, surreais, mas no final tudo deu certo. O principal motivo da viagem tinha sido a imobilidade dela. Mesmo depois de ser desenganada pelos médicos aqui da Terra, lá em Óriondel eles conseguiram lhe devolver o movimento. Um milagre de Deus com ajuda da tecnologia oriondense.

Ela tinha mesmo motivos para sorrir à toa.

— Vamos esperar mais um pouco — disse ele se virando e derrubando-a de cima dele. — Até que estou gostando dessas férias prolongadas.

Ela o abraçou e beijou-o dizendo:

— Você merece meu amor. Depois de todo o sufoco em Óriondel.

— Nós merecemos — concordou ele voltando a deitar ao lado dela.

— Está chovendo? — perguntou.

— Desde madrugada. Uma chuvinha leve, gostosa.

— Quando cheguei de noite percebi mesmo que se formava uma chuva ao sul.

— Vamos descer almoçar? O “rango” já está pronto.

— Você está se tornando uma excelente dona de casa — gracejou ele. — Não esperava tanto.

— Engraçadinho. Mas não vá se acostumando que assim que conseguir uma secretária do lar, não colocarei mais as mãos numa pia de louça suja.

— Então vai demorar.

Estava mesmo difícil conseguir alguém de confiança. Ter uma empregada doméstica estava se tornando uma raridade. A casa de seu pai tinha várias empregadas, mas com sua morte prematura e a viagem sem prévio aviso dela, fez com que todos debandassem para outro trabalho. Bem feito para ela que não soube segurá-los no seu devido tempo. Agora era esperar e correr atrás.

— Ouviu um carro parar no portão? — perguntou Carlos Alberto levantando a cabeça.

— Deve ser Diana. Ela ficou de vir almoçar conosco. — Mariana pulou da cama e foi observar na janela.

— É ela mesma. — Confirmou acionando o controle remoto, abrindo o portão.

O quarto era um dos vários que existiam no segundo piso do sobrado de seu pai. Mariana tinha muitas lembranças da casa e nem todas eram boas. Fazia alguns anos que, não se dava com seu pai, um advogado autoritário e de difícil entendimento, ela havia ido morar sozinha e não mais retornado àquela casa. Depois da morte dele e tudo o que sucedeu em seguida, ela acabou resolvendo voltar a morar ali. A casa estava abandonada o que era triste. Ela nascera ali e bem ou mal sobrevivera dentro daquelas paredes e não achava justo, agora que não tinha mais um pai e nem mãe, largar tudo e seguir sua vida como se fosse possível apagar as lembranças boas ou ruins com uma borracha. Fizera a proposta para Carlos Alberto vir morar com ela e ele aceitara. Não era ainda o sonhado casamento, mas o primeiro passo estava dado.

— Vou descer e receber minha amiga — disse Mariana se inclinando e dando um beijo em Carlos Alberto, que continuava deitado de costas com as mãos na nuca.

— Tá. Vou tomar um banho rápido e já desço também.

                                                            ***

Diana esperou que o portão se abrisse totalmente e acelerou o Renault Duster.  Seguiu devagarinho pela calçada até se aproximar do sobrado nos fundos do terreno. Enquanto passava ficou observando os canteiros de flores, a piscina e o gramado verde. Tudo a remetia a uma única lembrança nada feliz. Não fazia muito tempo que ela e Anita, que Deus a tenha, haviam percorrido aquele mesmo trecho em direção à rua, empurrando uma cadeira de rodas com Mariana desacordada em cima. Era uma fuga desesperada de um Sgol assassino. Um ser semelhante a um homem lagarto, perigoso e mal-intencionado. Não fosse a chegada de Carlos Alberto… ela sentiu a pele do braço se arrepiar só de pensar naquele dia terrível e sufocante.

Parou o carro logo na entrada da garagem onde o jipe de Mariana e o fusca de Carlos Alberto dividiam o espaço lado a lado. Assim que desceu Mariana abriu a porta da casa e saiu encontrá-la.

— Que bom que veio amiga. — Mariana era só alegria.

Entre abraços, risos e piadinhas elas entraram para o interior da casa. Estavam numa felicidade só. O retorno para a Terra era mais ou menos como se tivessem nascido de novo. Para as duas a viagem através do espaço não tinha sido tão boa quanto imaginaram. Tudo era novo, fantástico. Mas o enclausuramento dentro da nave acabou por deixar seus dias tristes e monótonos. Ao chegarem a Óriondel, o planeta de Iruama, no entanto, a adrenalina foi a mil, do começo ao fim. O retorno à Terra era realmente para ser comemorado.

                                                           * * *

Mais tarde, depois de um almoço simples e de bom gosto, Mariana e Diana vieram até a sala de estar e sentaram-se ao lado de Carlos Alberto que assistia a um programa de tevê qualquer. Tinha o semblante soturno, triste.

— Problemas, Carlos Alberto? — perguntou Diana puxando assunto e tirando-o de seu devaneio.

— Muitos — sorriu ele sem muito interesse em conversar. Diana bem sabia dos problemas dele. Mariana não deixaria de contar tudo a ela.

— Você dará um jeito, meu amigo — animou ela. — Competente, destemido e insistente como é, não será um probleminha financeiro que o colocará na lona, não é mesmo?

Como ele nada respondeu Diana passou a falar consigo mesma.

— Eu também acreditei estar falida depois que aquela louca da Gondra destruiu meu petshop e assassinou minha funcionária. Mas, vejam só, o seguro cobriu quase todas as despesas e eu consegui um sócio e vou reabrir minha clínica veterinária e petshop, ainda mais moderna e maior.

— Isso é mesmo uma ótima notícia amiga. — Mariana ouvia com interesse a narrativa. — E quem é o sócio? Eu conheço?

Diana deu um sorriso enigmático e melindroso.

— Não, Mariana. Eu mesma o conheci no mesmo dia em que chegamos de volta e foi amor à primeira vista.

— Como assim, Diana? — Mariana parecia desconcertada. — Estamos aqui falando de um sócio ou de um namorado?

— Os dois amiga. Estou apaixonada.

— E como o conheceu? Conte tudo.

— Então, antes de nossa viagem deixei todos os “pepinos” pendentes por conta de uma firma de advocacia e, no nosso retorno, os procurei e só então conheci o advogado que cuidou do meu caso.

— Ele é o “cara”?

— Isso mesmo, o Dr. Mauro Bonilha é um gato que não vou largar mais.

— “Tava” na hora, não é mesmo amiga. Do jeito que ia achei que ficaria pra titia. — Brincou Mariana numa gargalhada.

— Nem sou tão velha assim — fingiu Diana estar chateada.

— Estivemos hoje de manhã visitando alguns imóveis para locar e instalar nossa firma. Acho que encontramos. À tarde fecharemos contrato e começaremos a montar meu novo petshop e clínica veterinária.

Dizendo isso ela se levantou.

— Vou nessa, Mariana. Já estou quase atrasada. — Disse pegando sua bolsa e se encaminhando para a saída.

— Tchau Carlos Alberto — gritou da porta. — Força amigo. Acredito muito em você. Não se esqueça, — disse ela rindo —, que você é meu herói. Devo minha vida a você.

Deu um abraço em Mariana e abriu a porta do carro.

— Boa sorte amiga — disse Mariana. — Torço por você.

— Obrigada, qualquer dia desses temos que marcar um jantar para eu apresentar o Mauro. Você vai ver que pessoa magnífica.

— Combinado — gritou Mariana acima do barulho do motor.

Lentamente Diana foi indo de ré até à rua, manobrou e partiu.

Mariana voltou para dentro e encontrou Carlos Alberto no escritório da casa. Estava no computador.

— O que o preocupa, querido? — perguntou ela sentando em seu colo e na frente da tela. — Sei que não é com sua firma.

Ele desviou o olhar e não respondeu. Não queria estragar seu dia. Fazia muito tempo que não a via com aquela alegria estampada no rosto. Mesmo quando dormia. Era a sua própria alma que transbordava de felicidade. Não era justo ele atrapalhar um encontro tão íntimo dela consigo mesma. Não era sempre que isso acontecia com uma pessoa.

— Não quer responder, não precisa. — Ela afagou seu cabelo e beijou-lhe na testa e levantou-se de seu colo. — Sei muito bem o que lhe aflige. O conheço bem, meu querido. Vou cuidar da louça do almoço — avisou. — Depois vou continuar minha busca por uma empregada doméstica.

Carlos Alberto continuou sua procura na internet. Procurava por qualquer indício que pudesse levá-lo a Sários. Só ia poder descansar em paz quando o localizasse. Ele era um perigo em escala global e não podia ser deixado solto. Ainda mais quando a população nem sabia de sua existência.

Em sua busca, descobrira que no mesmo dia da morte de Gondra seu corpo tinha sido levado do IML numa invasão noturna. As toneladas de entulhos causados pela implosão do edifício Paraíso no centro da cidade, tinham sido removidas e todos os objetos encontrados sob ele foram levados pelo exército. Não havia nenhum relato de que tivessem encontrado algo importante. Como o local fora isolado pelas forças armadas os cidadãos foram mais uma vez mantidos a margem dos acontecimentos.

Carlos Alberto desligou o computador e se levantou. O que lhe chateava era não saber como encontrar Sários. Era uma agonia que vivia, tinha medo que pudesse ser tarde demais.

Precisava ter paciência, sempre paciência.

Ao tempo da obra e do contrato, como diria um editor de livros.

                                                       ***

Ao cair da tarde a chuvinha mansa que se estendera por quase todo o dia desvaneceu, e um sol fraco entre nuvens surgiu pouco à vontade no céu, como se preferisse continuar dormindo naquele dia preguiçoso e úmido.

Carlos Alberto parou o fusca no sinal vermelho, já próximo da sorveteria “Doce Veneno” e tamborilava o volante do carro descontraído. De onde estava podia ver o prédio de dois andares onde funcionava a sorveteria. No térreo funcionava a mesma e em cima morava a tia Laura.

Uma S10 preta era o único veículo estacionado na frente da loja de sorvetes. Viu a tia sair do estabelecimento de mãos dadas com um senhor de barbicha branca e aparência bem idosa com uma bengala na mão direita. Ficou observando curioso e achou muito estranho quando o velho lhe deu um beijo nos lábios e entrou na caminhoneta com uma agilidade pouco comum a alguém tão idoso.

“Tia Laura arranjou um namorado” pensou desconsertado. Era algo tão inusitado que lhe causava realmente muita estranheza. Naquele momento sentiu uma antipatia pelo desconhecido e não soube identificar o porquê. Parecia apenas um Senhor inofensivo.

A tia tinha pouco mais de sessenta anos e desde que seu noivo morrera há mais de trinta anos, jurara nunca mais arranjar ninguém. Desde então cumprira a promessa com uma alegria inerente no coração. Transformara-se numa solteirona feliz

O sinal abriu e Carlos Alberto acelerou os cinquenta metros que o separava do estabelecimento e estacionou em frente.

Apesar de achar esquisito que alguém passasse a vida toda sozinha e na velhice arrumasse um companheiro, ele compreendia que ela tinha o direito de tentar a “sorte”. Afinal dizem que não tem idade para ser feliz.

Entrou na sorveteria e tia Laura estava sentada a uma cadeira ao lado do balcão. No momento não havia nenhum cliente e nenhum funcionário no estabelecimento.

— Carlos Alberto! — exclamou Laura se levantando com um tom alegre no rosto ao vê-lo entrar. — Voltou então da viagem? — ela o abraçou com vigor. — Como está, querido? Que saudade. — Seus olhos marejaram.

— Estou bem tia e você?

— Vou levando a vida como dá. Nunca me senti tão sozinha em toda a minha vida. — Ela voltou a sentar em sua cadeira e indicou outra para ele. — Com a morte de mamãe e sua partida, fiquei sem os dois de uma vez só. A vida é muito triste às vezes, mas pode nos oferecer novos caminhos a qualquer momento.

Ela voltou a se levantar.

— Vou pegar um sorvete para você. De flocos com cobertura de chocolate, não é mesmo?

Carlos Alberto assentiu.

— Como dizia —, continuou Laura enquanto preparava a taça, — a vida pode nos oferecer outras chances. Logo que você partiu, conheci alguém e acabei por quebrar a promessa que fizera lá atrás.

— Como assim tia?

— Arrumei um namorado.

Carlos Alberto sorriu.

— Eu vi mesmo a pouco vocês dois ai fora quando chegava. Como o conheceu? É uma pessoa legal?

— Conheci Jolnir aqui mesmo na sorveteria. Um belo dia ele passou por aqui para tomar um sorvete e começamos a conversar e não paramos mais. É um fazendeiro aposentado, viúvo e tão solitário quanto eu.

Laura trouxe a taça de sorvete e depositou à mesa, em frente a Carlos Alberto.

— Não digo que ele é o amor de minha vida — continuou a tia. — Até porque estou passada de mais pra esse tipo de coisa. Mas me sinto bem, perto dele. Preenche alguns vazios, se é que me entende.

Carlos Alberto concordou com a cabeça enquanto servia-se do sorvete.

A vida podia ter seus altos e baixos, mas como era bom estar vivo.

                                                          * * *

O velho chamado de Jolnir dirigiu sua S10 preta pelas ruas da cidade sem pressa. Aos poucos as casas foram raleando e ele saiu em uma estrada rural, embora asfaltada, não tinha acostamento. Seguiu por ela por uns dez quilômetros até que acabou o asfalto e a estrada continuava de chão. Rodou ainda mais alguns quilômetros até uma fazenda que margeava a estrada. Ali ele saiu e esperou que um grande portão de metal reforçado se abrisse automaticamente. Seguiu até uma casa de tijolos à vista com aparência antiga e janelões estilo venezianas. Por toda a extensão da fazenda uma cerca de tela reforçada barrava o acesso ao local. Era uma cerca nova há muito pouco tempo instalada.

Jolnir estacionou a caminhonete na frente da casa, adentrou-a e passou pela sala, entrou num curto corredor, desceu alguns degraus de escada e saiu em uma espécie de laboratório, situado no porão da casa. Havia apenas uma pequena janela fechada no alto que dava para os fundos da propriedade.

No centro do recinto um grande cilindro de vidro transparente, cheio de um líquido esverdeado, estava ligado a tubos e a rede elétrica. Dentro do cilindro um ser, semelhante a um humano estava em formação.

— Em breve você estará de volta minha filha — disse o velho enquanto verificava os equipamentos. — Muito em breve.

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